Charles Hodge
O Supralapsarianismo
Primeiro, o esquema supralapsariano. Segundo este ponto de vista, Deus, a fim de manifestar sua graça e justiça, selecionou dentre os homens criáveis (ou seja, dentre os homens a serem criados) a certo número como vasos de misericórdia, e a outros como vasos de ira. Na ordem do pensamento, a eleição e a reprovação precedem o propósito de criar e de permitir a queda. A criação tem como fim a redenção. Deus cria uns para serem salvos, e outros para serem perdidos.
Este esquema recebe o nome de supralapsariano porque pressupõe que os homens como não-caidos, ou antes da queda, são os objetos de eleição para a vida eterna, e de preordenação para a morte eterna. Este ponto de vista foi introduzido entre certa classe de agostinianos, ainda antes da Reforma, mas não foi geralmente aceito. O próprio Agostinho, e depois dele a grande corporação daqueles que adotam seu sistema de doutrina, foram, e continuam sendo, infralapsarianos. Ou seja, sustentam que é da massa de seres humanos caídos que alguns foram eleitos para a vida eterna, e alguns, para o justo juízo de seus pecados, predestinados para a morte eterna.
A posição do próprio Calvino quanto a este ponto tem sido discutida. Como isso em seu tempo não era um ponto especial de controvérsia, é possível citar de seus escritos certas passagens que sustentam o conceito supralapsariano, e outras passagens que favorecem o conceito infralapsariano. No "Consensus Genevensis", escrito por ele, há uma afirmação explícita da doutrina infralapsariana. Depois de dizer que ouve pouco proveito em especular sobre a preordenação da queda do homem, ele acrescenta: "Quos ex damnata Adao sobole Deus quos visum est eligit, quos vult reprobat, sicuti ad fidem exercendam longe aptior est, ita majore frutu tractatur"1.
Na "Formula Consensus Helvetica", redigida como o testemunho das igrejas suíças em 1675, cujos autores principais foram Heidegger e Turrettin, há um repudio formal do ponto de vista supralapsariano. No Sínodo de Dort, que inclui delegados de todas as igrejas reformadas no Continente e na Grã-Bretanha, a grande maioria de seus membros era infralapsariana, sendo Gomarus e Voetius os principais defensores do conceito oposto. Os cânones daquele Sínodo, ainda que evitando toda declaração extremada, foram redigidos de tal maneira que se conferiu uma autoridade simbólica à doutrina infralapsariana. Dizem eles:2 "Cum omnes homines in Adamo peccaverint et rei sint facti maledictionis et mortis aeternae, Deus nemini fecisset injuriam, si universum genus humanum in peccato et maledictione relinquere, ac propter peccatum damnare voluisset".
A mesma observação se aplica à Assembléia de Westminster. Twiss, o Prolocutor daquela venerável corporação, era um zeloso supralapsariano; porém a grande maioria de seus membros militava no campo oposto. Os sínodos daquela Assembléia, ainda que impliquem claramente a posição infralapsariana, foram, não obstante, redigidos de tal maneira que evitaram constituir uma ofensa para os que abraçavam a teoria supralapsariana. Na "Confissão de Westminster",3 diz-se que Deus designou os eleitos para a vida eterna, e "o resto da humanidade aprouve a Deus, segundo o inescrutável conselho de sua própria vontade, por meio do qual ele estende ou retém a misericórdia como lhe apraz, para a glória de seu soberano poder sobre suas criaturas, para ignorá-los e destiná-los a desonra e ira em virtude de seus pecados, para o louvor de sua gloriosa justiça". Aqui somos ensinados que aqueles que Deus ignora são "o resto da humanidade"; não o resto de homens ideais ou possíveis, mas o resto daqueles serem humanos que constituem a humanidade, ou a raça humana.
Em segundo lugar, a passagem citada ensina que os não-eleitos são ignorados e ordenados à ira "em virtude de seus pecados". Isso implica que foram contemplados como pecaminosos antes dessa predestinação para juízo. O conceito infralapsariano prossegue sendo mais evidentemente pressuposto nas respostas às perguntas 19 e 20 do "Breve Catecismo". Ali se ensina que toda a humanidade perdeu, pela queda, a comunhão com Deus, e que se acha sob ira e maldição, e Deus, por seu mero beneplácito, elegeu alguns (Alguns daqueles que estavam sob sua ira e maldição) para a vida eterna. Essa foi a doutrina da grande maioria dos agostinianos desde o tempo de Agostinho até a atualidade.
Objeções ao Supralapsarianismo
As objeções mais óbvias à teoria supralapsariana são:
(1.) Que envolve certa contradição. De um Non Ens, como diz Turrettin, não se pode determinar nada. O propósito de salvar ou de condenar deve seguir necessariamente, na ordem do pensamento, o propósito de criar. O último é pressuposto pelo primeiro.
(2.) É um principio bíblico claramente revelado que, onde não há pecado, também não há condenação. Portanto, não pode haver predestinação para a morte que não contemple seu objeto como pecaminoso.
(3.) Parece óbvio, à luz de todo o argumento do Apóstolo em Romanos 9.9-21 que a "multidão" da qual alguns são escolhidos e outros, deixados, é a massa de homens caídos. O propósito do escritor sacro é vindicar a soberania de Deus na dispensação de sua graça. Ele tem misericórdia de um e não de outro, segundo seu próprio beneplácito, portanto todos são igualmente indignos e culpados. A vindicação é extraída não só da relação de Deus com suas criaturas, como seu Criador, mas também de sua relação com elas como seu soberano, cujas leis elas têm violado. Essa descrição permeia todas as Escrituras. Diz que os crentes foram escolhidos "do mundo"; ou seja, dentre a massa de seres humanos caídos. E em todas as partes, como em Romanos 1.24, 26, 28, declara-se a reprovação como sendo de caráter judicial, baseada na pecaminosidade de seus objetos. De outra maneira, não poderia ser uma manifestação da justiça de Deus.
(4.) A criação nunca é descrita na bíblia como um meio para executar o propósito da eleição e da reprovação. Isso, como já se observou com justiça, não pode ser feito. Os objetos da eleição são indivíduos concretos, como se admite nesta controvérsia. Mas o único que distingue entre meros homens possíveis ou "criáveis" e indivíduos concretos, que com certeza seriam criados e salvos ou perdidos, é o propósito divino de que serão criados. De maneira que o propósito de criar necessariamente precede, na ordem da natureza, o propósito de redimir. Por isso em Romanos 8.29, 30 se declara que... "Aos que de antemão conheceu, também os predestinou."
O conhecimento antecipado, porém, implica a existência definida de seus objetos; e a certeza da existência pressupõe por parte de Deus o propósito de criar. Nada existe ou deve existir senão em virtude do decreto daquele que ordena previamente o que há de suceder. Toda futurização, portanto, depende da ordenação prévia; e o conhecimento antecipado pressupõe futurização. Temos, portanto, a autoridade do Apóstolo para dizer que o conhecimento antecipado, baseado no propósito de criar, precede a predestinação. E, portanto, a criação não é um meio para executar o propósito da predestinação, porque o fim tem de preceder os meios; e, segundo Paulo, o propósito de criar precede o propósito de redimir, e portanto não pode ser um meio pra um fim. Somos informados que nosso Senhor foi entregue à morte "pelo determinado desígnio e presciência de Deus".
Sua morte, porém, necessariamente pressupunha sua encarnação, e por isso, na ordem do pensamento, ou no plano de Deus, o propósito de preparar-lhe um corpo precedeu o propósito de entregá-lo á morte da cruz. A única passagem da bíblia que parece ensinar explicitamente que a criação é um meio para execução do propósito da predestinação é Efésios 3.9, 10. Ali, segundo alguns, somos informados que Deus criou todas as coisas a fim de que sua multiforme sabedoria fosse dada a conhecer por meio da igreja. Se esta é a relação entre as varias cláusulas desses versículos, o Apóstolo ensina que o universo foi criado a fim de que, por meio de pessoas remidas (a Igreja), a glória de Deus fosse revelada a todas as criaturas racionais. Neste sentido, e neste caso, declara-se a criação como sendo um meio para a redenção; e portanto o propósito de redimir tem de preceder o propósito de criar.
Apesar disso, não é esta a conexão lógica das cláusulas nesta passagem. Paulo não diz que Deus criou todas as coisas a fim de que. Ele não se refere ao desígnio da criação, mas ao desígnio do evangelho e de sua própria vocação para o apostolado. A mim, diz ele, me foi dada esta graça de pregar entre os gentios as insondáveis riquezas de Cristo, e iluminar a todos os homens no conhecimento do mistério (da redenção), a fim de que, por meio da Igreja, seja dada a conhecer a multiforme sabedoria de Deus. Esta é a conexão natural da passagem, e a interpretação adotada pelos comentaristas modernos, com independência total da relação que tenha a passagem com a controvérsia supralapsariana.
(5.) Uma objeção adicional ao sistema supralapsariano relaciona-se ao fato de que ele é inconsistente com a exibição bíblica do caráter de Deus. Ele é declarado como Deus de misericórdia e justiça. Mas não é compatível com esses atributos divinos que os homens sejam predestinados à desgraça e à morte eterna como inocentes, ou seja, antes que houvessem apostatado de Deus. Se são deixados de lado e predestinados a morte por seus pecados, isso se deveria ao fato de que, na predestinação, eles são considerados criaturas culpadas e apostatadas.
O Infralapsarianismo
Segundo a doutrina infralapsariana, Deus, com o desígnio de revelar sua própria glória, ou seja, as perfeições de sua própria natureza, decidiu criar o mundo; em segundo lugar, permitiu a Queda do homem; em terceiro, elegeu, dentre a massa de seres humanos caídos, uma multidão que ninguém poderia contar como "vasos de misericórdia"; quarto, enviou seu Filho para a redenção desses seres; e, quinto, deixou que o restante da humanidade, como deixara os anjos apóstatas, sofresse o justo castigo por seus pecados.
Os argumentos em favor deste ponto de vista sobre o plano já foram apresentados na forma de objeções à teoria supralapsariana. Não obstante, pode-se observar adicionalmente:
1. Que esta teoria é coerente e harmoniosa. Como todos os decretos de Deus constituem um propósito inclusivo, não se pode admitir nenhum ponto de vista da relação dos detalhes abraçando este propósito que não possa ser reduzido a uma unidade. Em todo grande mecanismo, seja qual for a quantidade ou complexidade das partes que o constituem, é preciso haver unidade de desígnio. Cada parte tem uma relação determinada com as outras partes, e faz-se necessário a percepção desta relação para a compreensão adequada do todo. Além disso, como os decretos de Deus são eternos e imutáveis, nenhum conceito sobre o seu plano de ação que supunha que primeiramente ele propôs uma coisa e em seguida outra pode ser coerente com a natureza desses decretos. E como Deus é absolutamente soberano e independente, todos os seus propósitos hão de ser determinados de dentro, ou conforme o conforme o conselho, de sua própria vontade. Não se pode presumir que eles sejam contingentes ou suspensos com base na ação de suas criaturas, nem com base em coisa alguma externa a ele mesmo.
O esquema infralapsariano, tal como o mantêm a maioria dos agostinianos, cumpre todas as condições. Todos os particulares constituem um todo inclusivo. Todos seguem uma ordem que não pressupõe mudança nenhuma de propósito. Todos dependem da vontade infinitamente sábia, santa e justa de Deus. É para este fim que ele cria o mundo, que permite a Queda; dentre todos os homens, ele elege alguns para a vida eterna e deixa o restante entregue à justa retribuição que merecem seus pecados. Aos que elege, ele os chama, justifica e glorifica. Esta é a cadeia de ouro cujos elos não podem ser quebrados nem transpostos. Esta é a forma na qual o esquema da redenção aparecia na mente do Apóstolo, tal como ele nos ensina em Romanos 8.29-30.
Diferentes Significados Designados à Palavra Predestinação
2. A palavra predestinação é ambígua. Pode ser empregada, primeiramente, no sentido geral de preordenação. Neste sentido, tem referência idêntica a todos os acontecimentos; porque Deus ordena antecipadamente tudo o que acontece. Em segundo lugar, pode referir-se ao propósito geral da redenção sem referência especifica a indivíduos concretos. Deus predeterminou revelar seus atributos na redenção dos pecadores, como predeterminou criar os céus e a terra para manifestar seu poder, sabedoria e benevolência. Em terceiro lugar, é geralmente usada na teologia para expressar o propósito de Deus em relação à salvação dos homens individualmente. Inclui a seleção de uma porção da raça humana para ser salva, enquanto o restante é deixado para perecer no pecado. É neste sentido usada pelos supralapsarianos, que ensinam que Deus selecionou determinado número de seres humanos para serem criados e destinados como vaso de ira. E dessa forma subordinam a criação à predestinação como um meio para um fim. É a esse respeito que os infralapsarianos objetam como sendo algo inconcebível, repugnante à natureza de Deus e antibíblico.
Não obstante tomando a palavra predestinação no segundo dos sentidos supramencionados, pode admitir-se que ela precede, na ordem do pensamento, o propósito de criar. Este ponto de vista é perfeitamente consistente com a doutrina que faz do homem, como criado e apostatado, objeto da predestinação no terceiro e comumente aceito significado da palavra. O apostolo ensina em Colossenses 1.16 que todas as coisas, visíveis e invisíveis, foram criadas por Aquele e para Aquele que é a imagem do Deus invisível, o qual é antes de todas as coisas, por quem existem todas as coisas, e que é a cabeça do corpo, a Igreja. O fim da criação, portanto, é não meramente a glória de Deus, mas a manifestação especial dessa glória na pessoa e na obra de Cristo. Visto ser ele o Alfa, assim também é o Ômega; o começo e o fim. Tendo em vista este grande fim, a revelação de si mesmo na pessoa e obra de seu Filho, ele propôs criar, permitir a queda, eleger alguns para serem objetos de sua graça e deixar os demais em seus pecados.
Esta visão, como bem parece, concorda com as descrições das Escrituras e evita as dificuldades conectadas com a doutrina estritamente supralapsariana. É preciso ter em mente que o objeto dessas especulações não é intrometer-se na operação da mente divina, mas simplesmente certificar-se de e exibir a relação que as várias verdades reveladas na Escritura concernentes ao plano da redenção mantêm entre si.
1 Niemeyer, Collectio Confessionum, p.249.
2 Caput I, Art. 1; Acta Synodi, edição de Dort, 1620, p. 241.
3 Caput III, Art.6, 7; Acta Synodi, edição de Dort, 1620.
Teologia Sistemática de Charles Hodge p. 719-723
Editora Hagnos