Tradução

sábado, 17 de novembro de 2007

A certeza da que a fé nos confere de forma alguma exclui a tentação de dúvida e inquietude, ora mais, ora menos sentida

João Calvino

Com efeito, dirá alguém: enfaticamente outra é a experiência dos fiéis que, ao reconhecerem a graça de Deus para consigo, não só são tentados por inquietude, que freqüentemente os acossa, mas até, por vezes, tremem de gravíssimos temores, tão grande é a veemência das tentações desenfreadas para abalar-lhes a mente; o que não parece coadunar-se muito com essa certeza de fé! Conseqüentemente, impõe-se-nos resolver esta questão, se queremos que a doutrina supracitada se mantenha firme.


Nós de fato enquanto ensinamos que a fé deve ser certa e segura, não imaginamos alguma certeza que jamais possa ser tangida por alguma inquietude; senão que, antes, dizemos que os fiéis têm perpétuo conflito com sua própria desconfiança. Tão longe está de que coloquemos sua consciência em algum plácido repouso, o qual não seja absolutamente importunado por nenhuma perturbação! Todavia, por outro lado, de qualquer maneira que sejam afligidos, negamos que decaiam e se apartem daquela segura confiança que conceberam da misericórdia de Deus.


Nenhum exemplo de fé é mais insigne ou mais memorável do que aquele que a Escritura propõe em Davi, especialmente se visualizamos todo o curso de sua vida. Contudo, ele mesmo com freqüência se queixa de estar mui longe de desfrutar perenemente da paz de espírito. Bastará citar alguns de seus numerosos testemunhos. Enquanto censura os conturbados sentimentos de sua alma, que outra coisa censura senão sua própria incredulidade? "Por que te agitas", diz ele, "ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus" [Sl 42.5,11; 43.5]. Certamente que aquela consternação era evidente sinal de desconfiança, como se julgasse abandonado por Deus. Confissão ainda mais ampla se lê em outro lugar: "Eu disse em minha precipitação: lançado fui da vista de teus olhos" [Sl 31.22]. Em outro lugar também contende consigo em ansiosa e angustiada perplexidade; na verdade, formula uma indagação da própria natureza de Deus: "Porventura esqueceu-se Deus de ser misericordioso? Porventura rejeitará ele para sempre?" [Sl 77.7,9]. Mais duro é o que segue: "E eu disse: Isto constitui minha enfermidade; mas eu me lembrei dos anos da destra do Altíssimo" [Sl 77.10]. Ora, como que desesperado, a si mesmo se condena à morte; e não apenas se confessa sacudido de dúvida, mas, como se estivesse sucumbido no conflito, até mesmo imagina que nada mais lhe resta, porque pressupõe que Deus o havia abandonado, e lhe voltara a mão para destruí-lo, a qual outrora lhe era para auxílio. Por isso, não sem causa, ele exorta sua alma a que retorne a sua quietude [Sl 116.7], porque havia experimentado o que era ser arrojado por entre ondas turbulentas.


E no entanto, o que é admirável, por entre esses abalos a fé sustenta os corações dos piedosos; e na verdade alcança o viço da palmeira [Sl 92.12], de sorte a enfrentar a todos e quaisquer incômodos e se eleva para o alto; assim como Davi, quando poderia parecer esmagado, ainda que incriminando a si mesmo, não desistiu de buscar a Deus. Aquele que, deveras, lutando com a fraqueza pessoal, em suas ansiedades insiste com a fé, em larga medida já é vencedor. O que é licito concluir desta citação e similares: "Espera no Senhor. Sê forte; ele te fortalecerá o coração. Espera no Senhor" [Sl 27.14]. Davia si mesmo se acusa de desânimo e, repetindo o mesmo duas vezes, se confessa seguidamente sujeito a muitos sobressaltos. Entrementes, não apenas se desagrada a si próprio nessa falhas, mas aspira e se esforça em corrigi-las.


Por exemplo, caso se compare com o rei Acaz, logo se verá perfeitamente a diferença entre ambos. Isaías é enviado a levar remédio à ansiedade do rei ímpio e hipócrita. Ele lhe fala com estas palavras: "Estejas em guarda e aquieta-te; não te atemorizes", etc. [Is 7.4]. Que faz ele ao ouvir isto? Como fora dito antes, que o coração lhe foi abalado como as árvores da floresta são sacudidas pelo vento [Is 7.2], embora ouvisse a promessa, não cessou de apavorar-se. Portanto, esta é a mercê e castigo próprios da infidelidade: estremecer de tal forma, que aquele que não abre para si a porta, pela fé, na tentação se afasta de Deus; em contraposição, porém, os fiéis, a quem vultoso volume de tentações encurva e quase esmaga, delas se alteiam constantemente, ainda que não sem embaraço e dificuldade. E já que são cônscios da própria fraqueza de espírito, oram com o Profeta: "Não retires totalmente de minha boca a palavra da verdade" [Sl 119.43]. Com essas palavras somos ensinados que eles, por vezes, emudecem, como se sua fé fosse prostrada, os quais, no entanto, não decaem nem viram as costas; ao contrário, prosseguem sua luta, e orando espetam sua letargia, para que, ao menos, por sua própria complacência não se entreguem à preguiça.

Postado por Flávio Teodoro
(João Calvino / As Institutas - Edição Clássica – v.3 p. 41-43)

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