D.Martyn Lloyd-Jones
“De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada: se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria”.
Romanos 12:6-8
Fizemos as nossas considerações destes versículos de Romanos e o nosso breve repasso e visão panorâmica da historia da Igreja tendo como pano de fundo muita prosa sobre a unidade da Igreja. O nosso objetivo foi certificar-nos de que a única unidade que nos interessa é a que reproduz o modelo que se acha no Novo Testamento. Temos que examinar cada proposta, cada tentativa de unidade à luz deste ensino. Não adiante partir das coisas como estão e modificar um pouco aqui um pouco ali – a igreja católica romana com um pequena modificação, a Igreja da Inglaterra com uma pequena modificação, etc., até chegarmos a uma grande igreja que continuará mantendo a maior parte das características de todos os diferentes segmentos que estão sendo amalgamados.Não é desse modo que vemos as coisas. Dizemos que devemos examinar tudo à luz do ensino do Novo Testamento; e, assim como o povo em geral esta interresado em unidade, nós, evangélicos, dentre todas as pessoas, devemos nos interessar-nos por ela. A Igreja deve ser uma só, e deve ser vista como uma só, certamente o chamamento feito a nós é que devemos manifestar o tipo de unidade descrita no Novo Testamento, e asseverar que essa, e somente essa, é a Igreja Cristã, em contraposição a toda e qualquer imitação produzida pelos homens.
Mas ainda ficamos com um problema, ou melhor, com mais um aspecto dessa questão. A Igreja, como a conhecemos, não só é diferente da Igreja do Novo Testamento em sua ordem, em seu governo, porém há também uma grande diferença entre o seu modo de conduzir o culto, a adoração, e a maneira pela qual o Novo Testamento expressa a adoração. Aqui, nestes versículos, é-nos dado um quadro, um pequeno camafeu, do tipo de coisa que aconteceu na Igreja Primitiva. Várias vezes os fiz lembrar de uma passagem similar, de1 Coríntios, capítulo 14, onde o apóstolo diz, no versículo 16: “Que fareis pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação. Efésios 5:19 também nos dá uma descrição da igreja: “Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração”. Tais descrições nos propiciam a percepção do tipo de culto característico da Igreja Primitiva.
Assim pois, mais uma vez, se formos leitores inteligentes das Escrituras, obviamente teremos que perguntar a nós mesmos: o nosso culto corresponde ao daquelas descrições, e, se não, por que não? E como foi que mudamos do que vemos lá para o que conhecemos hoje? Quero ressaltar a imensa importância de fazer estas perguntas. Os evangélicos, parece-me, muitas vezes se dedicam a fazer algum tipo de leitura da Bíblia ou de estudo bíblico, qualquer que seja o nome que lhe dermos, muitos defeituoso. Contentamo-nos com uma espécie de conhecimento da letra das Escrituras, e nem sempre procuramos atentar para a doutrina, extraí-la, e ver a sua relevância para nós.
O culto, como era realizado pela Igreja Primitiva, exige a nossa atenção porque tem muita coisa pra nos dizer. Hoje há uma crescente tendência para o que é descrito como um estilo litúrgico de culto, com vestes sacras, como lhes chamam, e com o comportamento de toda a parafernália de atavios e paramentos. Pois bem, penso eu que isso esta ocorrendo em muitos segmentos da Igreja Cristã. Durante os últimos trinta ou quarenta anos venho observando uma crescente tendência de modificar os cultos nas chamadas igrejas livres, introduzindo orações e responsos fixos, e ritos formais em torno da mesa da Ceia do Senhor, do batismo, etc. As igrejas livres imitaram o que viram na Igreja Anglicana e, como lhes mostrarei, a Igreja Anglicana, por seu turno, tomou grande parte da sua liturgia da igreja católica romana. Em tempos recentes, grande ímpeto tem vindo de tudo o que se vê na televisão e de tudo o que é publicado nos jornais.
Essa é a situação, portanto devemos perguntar: onde essa forma de culto se acha no Novo Testamento? Como compará-la, por exemplo, com o que vemos nestes três versículos de Romanos, capitulo 12? Noutras palavras, parece-me que no presente ocorre mais uma vez, de forma aguda, uma disputa que se deu muitas vezes na Igreja. Há uma grande divisão entre o que por vezes chamam de “religiões de autoridade” e “religiões do Espírito”. Ou, se vocês preferirem, há uma vital diferença entre o tipo católico-romano de culto e o tipo de culto verdadeiramente protestante. Há toda a diferença do mundo entre o culto que depende mormente de cerimônias e ritos, e o tipo simples de culto, que exalta a liberdade do Espírito.
Ora, se você se sente inclinado a perguntar: “Que é que isso tem a ver comigo?”, tudo o que digo é que você não conhece o Novo Testamento. Isso é tudo o que se pode fazer com você. Se você realmente crê que o Novo Testamento é a Palavra de Deus, deve realmente preocupar-se com o culto, e, goste ou não, como já lembrei a todos vocês, será compelido a tomar decisões justamente sobre estas questões. Se não enxerga a tendência geral em direção a Roma, receio que você só pode estar cego.
Isso esta avançando, e avançando muito rapidamente. A proposta de que haja uma só igreja neste país – e essa é a proposta – diz-nos que a igreja deverá ser episcopal em seu governo e liturgia em sua forma de culto, e muitas pessoas se sentem muito felizes em aceitar isso. O objetivo supremo é ter uma grande igreja mundial que inclua a igreja de Roma, ou melhor, a igreja de Roma incluindo todas as demais. E assim você estará comprometido com um tipo litúrgico de culto.
Portanto, a questão é: vocês querem isso? Crêem nisso? Consideram certo? E essa é a questão levantada para nós por estes três versículos, porque neles temos uma descrição do culto característico da Igreja do Novo Testamento. Por isso mais uma pergunta: isso é um ponto vital, ou é apenas uma questão de gosto? Muitíssimas vezes, através dos anos, tenho ouvido pessoas dizerem – e me sinto mal com isso – “A linguagem da litania é tão bonita! Cranmer era um mestre no uso da língua, e ele empregava uma espécie de linguagem litúrgica; e as orações são tão belas!” Ouve-se esse argumento frequentemente, tanto entre as pessoas das igrejas livres como entre os anglicanos.
Esta é a pergunta que faço: a nossa forma de culto deve ser decidida pela tradição, ou o Novo Testamento deve ser o nosso padrão? Bem, não devemos abordar essa pergunta meramente em termos de preconceitos – isso é sempre errado. Não devemos dizer que nos opomos a estas coisas porque não fomos criados nessa tradição. E os outros não devem dizer: “Isto é certo porque é nossa tradição”. Todos nós somos chamados a examinar tudo à luz do Novo Testamento. Para nós nada importa, exceto a pergunta: é certo? E descobrimos se é certo ou não vindo ao tribunal das Escrituras do Novo Testamento. Está de acordo com ela?
Agora, neste ponto, há uma importante questão de principio que eu devo colocar diante de vocês. Vocês saberão que no tempo da Reforma Protestante aqueles homens de fé que naquele tempo foram levantados, em geral concordavam em que o Novo Testamento é a única e suprema fonte de autoridade. Mas eles eram propensos a diferir entre si num ponto muito importante, qual seja: em que sentido o ensino do Novo Testamento é obrigatório? E aí emergiu uma divisão entre Martinho Lutero e João Calvino, e não somente entre esses dois grandes homens, mas também entre dois segmentos da Igreja na Inglaterra.
Martinho Lutero ensinava que as Escrituras são a autoridade absoluta em todas as questões de doutrina com respeito à salvação, mas que, quanto ao governo da Igreja ou às formas de culto, o ensino do Novo Testamento não é obrigatório. Ele dizia que é permitido à sabedoria da Igreja produzir uma forma de culto e, na verdade, uma forma de governo da Igreja. Contudo, Calvino adotou um conceito muito diferente. Ele dizia que as Escrituras não são obrigatórias só em pontos como a doutrina da salvação; são igualmente obrigatórias, e devem ser a nossa única regra, com relação ao governo da Igreja e também às formas de culto.
Ora, no que se refere à Grã-Bretanha, a Igreja da Inglaterra seguiu Lutero. A Igreja da Inglaterra sempre ensinou que, embora as Escrituras sejam obrigatórias nas questões da salvação, não são obrigatórias nas questões de governo da Igreja e do culto. Mas surgiu neste país outro grupo de crentes que finalmente se tornaram conhecidos como puritanos, e, dentre os puritanos, um grupo que podemos descrever como “puritanos radicais” seguiu o ensino de Calvino. Vemos, pois, aí dois corpos de pessoas que eram, todas elas, crentes na infalibilidade das Escrituras e em sua inspiração singular, e que chegaram a conclusões divergentes com relação ao governo da Igreja e às formas de culto.
Registrei isso para orientação de vocês, e meu desejo é que examinem toda esta situação de maneira desapaixonada. Não devemos deixar-nos governar por preconceitos, gostos e aversões; devemos fazer de fato um grande esforço para chegar a uma opinião verdadeiramente razoável à luz do que aconteceu na historia da Igreja.
Por conseguinte, vamos primeiro às Escrituras. Teríamos nós algum ensino ministrado por nosso bendito Senhor quanto a esta questão? O nosso Senhor prescreve orações lidas ou recitadas? Teria ensinado Ele que devemos prestar nosso culto com a mesma linguagem e com as mesmas palavras, como fazem aqueles que usam o mesmo Livro de Oração todos os domingos? Que é que se pode provar em termos do ensino de nosso Senhor e Salvador?
Naturalmente, o exemplo apresentado por aqueles que acreditam em forma litúrgica de culto e a Oração do Senhor (Pai Nosso). Eles assinalam que o nosso Senhor disse aos Seus discípulos: “Quando orardes, dizei...” (Lucas 11:2). “Ei-lo aqui”, dizem eles, “compondo uma oração com a intenção que a repitam”. E daí, compilaram seus livros de oração e repetindo essas orações domingo após domingo, eles dizem que estão simplesmente fazendo o que o nosso Senhor e Mestre primeiramente ensinou à Igreja.
É obvio que isso deve ser examinado; é o único verdadeiro fragmento de evidência que eles podem apresentar. Como lidar com esse argumento? Pois bem, isso tem sido tratado muitas vezes; foi respondido por muitos dos principais puritanos, por homens como o Dr. John Owen e outros, e eu vou mostrar-lhes os argumentos que eles sempre apresentavam e que me parecem inevitáveis, partindo do estudo das Escrituras. Que foi que o nosso Senhor fez quando disse aos Seus discípulos, “Quando orardes, dizei...”?
Bem, certamente a Oração do Senhor (Pai Nosso) deve ser considerada uma oração modelo. O nosso Senhor não disse que devemos repetir esta oração mecanicamente toda vez que orarmos. Se consultarmos Lucas 11:1,2, leremos que os discípulos se aproximaram dEle e disseram: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos”. Eles estavam em dificuldade quanto a orar. Não nos surpreendamos com isso; todos nós temos experimentado a mesma dificuldade. A oração pode ser muito difícil. Assim eles fizeram o seu pedido, e o nosso Senhor respondeu: “Quando orardes, dizei...”. Certamente o que Ele quis dizer foi: é desse modo ou neste estilo que vocês devem orar.
Noutras palavras, sempre se deve começar com adoração: “Pai nosso, santificado seja o teu nome...”. Não se deve começar fazendo petições e apresentando desejos, mas sempre pela adoração a Deus. O nosso Senhor estava instruindo os Seus seguidores sobre os grandes princípios da oração; e o primeiro é que devemos sempre recordar e compreender que na oração nos aproximamos do Deus todo-poderoso e eterno. Antes de tudo mais, devemos prestar a Ele adoração e culto. Devemos desejar a vinda do Seu reino, e devemos aspirar a que toda a Sua vontade seja feita, “como no céu, assim na terra”, etc. Só então devemos passar aos pedidos e desejos pessoais.
Portanto, o nosso Senhor estava dizendo, “deste modo”, “neste tipo de maneira”. Ele não estava compondo uma oração para ser repetida mecanicamente por Seus discípulos, nem sequer em espírito. Ele estava interresado em estabelecer os princípios, as idéias gerais, que eles deveriam empregar na ordenação das suas orações. Essa é a primeira resposta ao argumento que baseia o uso de liturgias e litanias no fato de que o nosso Senhor nos deu a Oração do Senhor (Pai Nosso).
Mas, em segundo lugar, o relato que nos é dado no capítulo seis do evangelho Segundo Mateus por certo indica claramente que o nosso Senhor estava tratando ali mais do culto particular do que do culto público. Ele fala que devemos ir para o nosso quarto, fechar a porta e orar em oculto, e diz: “E teu Pai, que vê secretamente, te recompensará” (Mateus 6:6). E esse me parece um argumento muito forte.
Em terceiro lugar, Owen assinala – e penso que se pode dizer muita coisa em favor disto – que, em todo caso, mesmo que o nosso Senhor estivesse ditando uma oração para os Seus discípulos repetirem, Ele realmente estava falando sob a dispensação do Velho Testamento. Tudo isso foi antes da Sua morte; antes do Pentecoste. E como se vê uma espécie de ritual de cerimonial no Velho Testamento, o nosso Senhor estava apenas mostrando como eles deveriam orar na situação em que eles estavam naquele tempo. Penso no risco de exagerar nisso, porém nos limites próprios em que fica esse argumento, há algo valido no que Owen diz.
Mas – e este argumento é certamente final e conclusivo - mesmo concedendo que o nosso Senhor ditou essa oração com a intenção de que a repitamos palavra por palavra, como tantos de nós nos inclinamos a fazer em nossos cultos – mesmo concedendo tudo isso, como justificaria isso a repetição de orações fixas domingo após domingo? Afinal de contas, a Oração do Senhor foi proferida pessoalmente pelo Senhor, ao passo que as orações utilizadas nos livros de oração são composições de homens de diferentes séculos, diferentes tradições, etc. Portanto mesmo que se possa justificar a recitação do Pai Nosso, certamente isso não dá direito a ninguém de ir além desse ponto e dizer que se deve repetir todo domingo todas as orações compostas, escritas e impressas.
Essa é, então, a única prova que remotamente pode ser aduzida como base no ensino do nosso Senhor e Salvador. Contudo, que dizer dos apóstolos? Pois bem, aqui eu penso que todos concordarão que não há nenhuma prova, nem da prática nem do ensino dos apóstolos, de que eles criam em orações formais, fixas. Eles não repetiam orações; suas orações variavam conforme as circunstâncias. Eles não preparavam orações para depois ensiná-las ao povo; eles nunca deram instruções às pessoas no sentido de repetirem orações particulares. Claro está que isso tudo é, em si e por si, e em muitos aspectos, o argumento mais significativo.
Essa é, então, a prova existente, no que se refere ao Novo Testamento. Que dizer da subseqüente história da igreja? E dos primeiros séculos? Pois bem, isto é extremamente interessante. Não há nada que demonstre que nos três primeiros séculos alguma coisa remotamente parecida com um livro de oração era utilizado. Os cristãos do século primeiro não tinham cultos litúrgicos. Estes apareceram pela primeira vez no século quarto, e há uma prova que parece muito boa de que isso ocorreu num lugar que conhecemos bem, um lugar chamado Antioquia.
Permitam-me ler para vocês alguns argumentos comprobatórios extraídos dos escritos do grande pai da Igreja, Tertuliano, que viveu por volta do ano 200 d.C. Eis como ele descreve a forma de culto que lhe era familiar. Diz ele: “Eles oram olhando para o céu; não como os idolatras, que olhavam para os seus ídolos e imagens; não abraçando altares e imagens, como faziam os pagãos; não fazendo como aqueles que repetem suas orações acompanhando os seus sacerdotes ou sacrifícios, mas derramando as nossas orações concebidas em nosso peito”.
Isso é muito importante e muito significativo! Não é? Tertuliano contrasta a prática cristã com a dos pagãos, os quais “repetem as suas orações acompanhando os seus sacerdotes ou sacrifícios”. Em contraposição a isso, ele descreve os cristãos “derramando as nossas orações concebidas em nosso peito”, prática que, sugiro-lhes, está em inteira conformidade com o ensino do Novo Testamento.
E agora outra citação de Tertuliano. Falando como uma pessoa era recebida na Igreja Cristã, ele diz: “Depois que o crente que se une a nós é lavado dessa forma, nós o levamos aos que são chamados “Irmãos”, levamo-lo para onde eles estão reunidos, para fazerem suas orações e súplicas por si e por aquele que foi recentemente iluminado”. Que tipos de orações eram essas? “Estas orações e súplicas”, ele acrescenta, “o Presidente da Assembléia (notem a expressão) derrama conforme a sua capacidade”. Ele não lê orações fixas, porém derrama suas orações “conforme a sua capacidade”. E diz Tertuliano: “Ele realiza esta obra amplamente”. Noutras palavras, ele prossegue em seu longo trabalho de elevar louvores a Deus e em nome de Jesus Cristo. No entanto, a frase relevante é: “ele derrama conforme a sua capacidade”, e a capacidade varia de caso a caso, de homem a homem, nesta questão de derramar orações do coração.
Então, como foi que as orações fixas entraram na Igreja Cristã no século quarto? Bem, essa forma de culto entrou muito gradativamente. Primeiro em Antioquia; depois começou a aparecer noutros lugares, mas nem todos os cristãos tinham as mesmas orações. Algumas foram compostas por um homem em Antioquia, outro homem noutro lugar teria composto outras orações, e eventualmente isso começou a acontecer na igreja de Roma. Mas ela esta longe de ser a primeira.
Contudo, quando aconteceu o grande evento a que fizemos referência, quando o imperador Constantino e o Império Romano entraram na Igreja, eles então, naturalmente, assumiram tudo isso. E quando assumiram pleno governo da Igreja, fizeram exatamente a mesma coisa com as formas de culto. Padronizaram tudo, determinando que as mesmas orações fossem feitas em toda parte. Isso só por si mostra que no principio elas não existiam. Havia uma liturgia em Antioquia, uma liturgia diferente em Alexandria, e assim por diante. Mas Roma deu cabo disso. Todo o mundo, e em toda parte, devia fazer as mesmas orações. E estas tinham que ser feitas na mesma língua, em latim. Naturalmente, isso foi mudado no presente, e é uma concessão interessante, porém o principio ainda permanece.
E, ao mesmo tempo, Roma não só padronizou as orações, mas também começou a introduzir várias outras inovações – vestes, por exemplo, os hábitos usados pelos chamados “sacerdotes”. Eles tomaram emprestada a maior parte do seu ritual das religiões de mistério pagãs. Não há dúvida sobre isso: não é teoria minha. Essa era a política. Os lideres daquela igreja pegaram o que consideravam ser de melhor nas religiões pagãs. A isso é que o povo estava acostumado. Em todas as religiões pagãs sempre houve, e ainda há, muita vestimenta e muita cerimônia. Pois os lideres da igreja se apropriaram disso tudo e disseram que tinham “batizado” essas coisas na Igreja Cristã. Eles assinalaram que sob a dispensação do Velho Testamento Arão vestia-se com diversas e complexas vestimentas, Arão e os demais sacerdotes, e dessa maneira introduziram todas estas vestes, que continuam sendo utilizadas.
Por conseguinte, se foi assim que as vestes e o culto litúrgico entraram na Igreja, a questão é: por que será que alguém pensou em fazer tudo isso? Por que começou em Antioquia? Pois bem, devemos de fato considerar isso cuidadosamente. Houve duas razões principais – vou tentar expor o argumento em prol das liturgias tão justamente quanto eu puder. Não quero dar a impressão que isso foi feito pelo capricho de alguém. Havia o que se consideram como sendo dois argumentos muito fortes.
O primeiro era que muitas vezes os ministros, os sacerdotes, seja qual for o designativo, eram ignorantes e incapazes de fazer orações. Devido serem frequentemente homens muito mal instruídos, viam-se em dificuldades. Por isso acolhiam muito bem a provisão de orações.
Todavia, em segundo lugar, e isto é ainda mais importante, sempre havia o perigo de ensino herético – como já vimos anteriormente na questão do governo da Igreja. Por isso os homens que tinham idéias heréticas e que ocupavam posição de liderança tinham muito cuidado quando pregavam, pois sabiam que eram observados, e a tendência deles era de introduzir as suas heresias em suas orações. Às vezes as orações são sermões, não orações. Provavelmente todos nós somos um tanto culpados disso, de vez em quando, e devemos estar sempre vigilantes quanto a isso. Ora, alguns daqueles mestres heréticos deliberadamente introduziram ensino errôneo por meio de suas orações públicas, e, enquanto todos os homens tivessem liberdade de fazer orações extemporâneas, nada se poderia fazer a respeito.
Mas, como já vimos, a igreja católica romana, como o Império Romano, sempre foi ávida de disciplina e sempre quis padronizar tudo. E, concordemos, claro está que o problema de disciplina é importante, e algo tem que ser feito com relação aos hereges. Assim, depois que o Império Romano se declarou cristão, decidiu-se que o único meio de lidar com a heresia era prescrever as orações, estabelecê-las fixamente, e determinar que essas orações, e somente essas, eram as orações que se deviam fazer. E dessa maneira se esperava que o culto verdadeiro fosse preservado e o perigo da introdução do ensino herético por meio das orações fosse eliminado. Então, se queremos ser generosos, podemos conceder que o motivo era bom.
Sim, mas isso acabou levando ao sistema romanista pleno e completo, com todo o seu ritual e o seu cerimonial – grandemente elaborado, claro, sobre a questão da Ceio do Senhor e do batismo. E depois foi levantada a questão de outros sacramentos, e passou a haver uma liturgia correspondente em cada caso, sendo elaboradas declarações para cada um deles. Tudo isso veio a ser uma imensa organização, num sentido, com sua liturgia complicada. Esse foi o procedimento típico da igreja católica romana durante toda a Idade Média. O culto inteiro era conduzido pelos sacerdotes, e o povo ficava em seu lugar à distancia, muitas vezes sem entender nada do que estava sendo dito. Mas isso não importava, o que importava era o que os sacerdotes faziam, e o povo ficava longe, não tomava parte, exceto nalguns ocasionais responsos que eram indicados na liturgia.
Isso então nos traz ao tempo da Reforma Protestante. Certamente isso também deve ser de grande interesse para todos nós, sob todos os pontos de vista. É importante saber por que as tradições nas quais fomos criados são como elas são, porém ainda mais importante, reitero, é saber o que devemos pensar, dizer e fazer nesta época de mudança e de transição. Que aconteceu na Reforma? Novamente, é muito interessante observar que Lutero apropriou-se de muita coisa que tinha sido feita por Roma. É óbvio que ele corrigiu as coisas que ele vira que eram completamente erradas, mas o seu interesse primário era pela grande doutrina da justificação pela fé somente. Como já vimos, ele acreditava que o ensino do Novo Testamento não era obrigatório quanto ao governo da Igreja e às formas de culto. Assim foi que ele se apropriou de grande parte do tipo católico-romano de culto.
Pois bem, Calvino é interessante nesta questão, e ele é freqüentemente mal entendido neste ponto. Muitos de nós, na Grã-Bretanha, particularmente os interessados no ensino puritano, têm a tendência de pensar que os conceitos de Calvino eram os mesmos dos puritanos. Entretanto não eram, de modo algum! Calvino acreditava em ter liturgia e acreditava em orações fixas, embora permitisse mais liberdade para a oração extemporânea do que a igreja católica romana jamais havia permitido, e, na verdade, mais do que na Igreja da Inglaterra jamais permitiu. Isso é tão somente um fato da história. Sejam cautelosos em seus argumentos, para não suceder que usem erroneamente o nome de Calvino. Há um sentido em que se pode afirmar que, na questão do culto, a Igreja da Inglaterra está mais perto de Calvino do que alguns dos puritanos.
Passando ao caso da Inglaterra, chegamos ao nome de Thomas Cranmer, o homem que compôs o Livro de Oração da Igreja da Inglaterra, e ele fez mais ou menos o que Lutero tinha feito na Alemanha. Ele não pôs fora o que havia de liturgia e de livro de oração, mas, ao contrário, assenhoreou-se da idéia, e igualmente se livrou de todos os erros do catolicismo romano. Assim foi que ele compôs aquelas orações que – admitamos prontamente – são obras primas, do ponto de vista literário. Isso não nos preocupa. Podemos admitir que são obras – primas, e que ele tinha uma extraordinária facilidade na questão de produzir orações escritas.
Mas o que é importante perguntar é: por que será que Cranmer fez isso? Por que decidiu ter um livro de oração e perpetuar o tipo católico romano de culto? E de novo devemos ser justos e reconhecer que este homem, e os que com ele estavam, defrontavam-se com alguns problemas muito especiais – é sempre nosso dever, como pensadores honestos, levar em conta as circunstâncias em que estavam os homens quando tomaram suas decisões, para não sermos injustos em nosso julgamento – e o maior problema que Cranmer enfrentava era o problema do clero ignorante. Os clérigos, em sua maioria, tinham sido criados como católicos romanos, e ignoravam as Escrituras. Muitos deles também eram vazios de qualquer experiência espiritual. Eles tinham passado para o protestantismo por um espírito de temor, por conveniência, e por várias outras razões que tais pessoas têm para mudar de lado. Assim, aqueles homens mudaram de lado no tempo de Henrique VIII, depois voltaram ao catolicismo romano no tempo da rainha Maria, e tornaram a voltar de lá no tempo de Elizabeth. Muitos homens do mesmo jaez fizeram a mesma coisa nos tempos de Oliver Cromwell, da Comunidade e da Restauração. Vigários de Bray, mudando conforme o clima político!
Assim é que Cranmer teve que se defrontar com tais pessoas, mas, deixando de lado o seu estado espiritual, esses homens eram de fato ignorantes, e um dos argumentos aventados era que havia necessidade de provê-lo de orações. Eles não sabiam orar, e, se os rebanhos por eles conduzidos deviam ser ajudados de algum modo, era seu dever prover tais ministros de orações que eles poderiam ler com o povo no culto.
Em acréscimo a isso, e este ponto também é importante, tentemos imaginar a situação de mais de quinze séculos de catolicismo romano! O sistema entranhou-se no sangue e nos ossos das pessoas. Estas nunca tinham ouvido nem pensado outra coisa. Subitamente ocorre esta explosão da Reforma Protestante. Ora, os lideres do protestantismo na Inglaterra criam na grande doutrina da justificação pela fé somente. Mas o povo não via isso claramente, e um dos argumentos que Cranmer usava era, como praticamente ele dizia: “Se agora devemos mudar não somente a nossa doutrina da salvação, como também toda a forma de culto, vamos perder todo o povo e vamos perder tudo. O que importa”, dizia ele, “é que o povo esteja certo na doutrina da salvação – a justificação pela fé somente. Os estilos de culto são indiferentes, e podemos continuar com a forma de culto existente até que tenhamos um povo verdadeiramente instruído”.
Pois bem, penso que se pode dizer algo em favor desse argumento. Como recurso temporário, como expediente temporário, certamente não só há muita coisa que se pode dizer por ele como também opino que no Novo Testamento há uma justificativa para isso numa coisa que os apóstolos e os anciãos fizeram. Consideramos anteriormente o que aconteceu no Concílio de Jerusalém, fato registrado em Atos, capítulo 15, e vocês lembram qual foi a decisão a que chegaram naquela reunião? Houvera um problema muito real porque os gentios estavam entrando na Igreja e os judaizantes estavam dizendo que eles precisavam ser circuncidados e sujeitar-se à lei. “Não”, disse aquele concílio em sua sabedoria, guiado pelo Espírito Santo. “Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais cargo algum, senão estas coisas necessárias: que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição” (Atos 15:28,29). Eles lançaram isso como um princípio.
Pois bem, isso não se aplica mais a nós. Não nos abstemos do sangue nesse sentido. Essa foi uma decisão para um período de transição, para evitar um conflito. Ele s disseram: deixaremos bem claro aos gentios que eles na tem que sujeitar-se à lei, mas, para tornar mais fácil a convivência de judeus e gentios cristãos, apelaremos aos gentios para que se abstenham destas coisas particulares por algum tempo.
Estou opinando, pois, que Cranmer e os outros foram motivados pelo mesmo tipo de argumento. “Aí estão as pessoas tão acostumadas com esta forma de culto – bem, não as escandalizaremos desnecessariamente, sejamos claros sobre a nossa grande doutrina da salvação, porém façamos esta concessão: Continuemos a usar a liturgia, livremo-nos dos acréscimos e erros católicos – romanos e façamos dela uma liturgia pura e verdadeira. Essa é uma boa medida temporária”. E eu estou disposto a conceder que, como medida temporária, foi justificável.
Ora, procurem voltar mentalmente ao século dezesseis, com todas aquelas dificuldades. Aqueles homens se defrontavam com o populacho ignorante, gente cheia de preconceitos e que dizia: “Sempre se fez assim!” Vocês não dizem coisas assim as vezes? Ouço muito freqüentemente esse argumento, não só de anglicanos, mas também de batistas, metodistas e outros. O povo era desse jeito naquele tempo, e devemos reconhecer e encarar isso. Em principio não há nada de errado em recorrer a um expediente ou a uma medida temporária quando o problema não envolve uma verdade vital, essencial. É praticar um principio correto fazer, pelo bem da fraternidade, da comunhão e da verdadeira unidade no Espírito, o tipo de apelo e de concessão que o Concílio de Jerusalém fez. Esse é um argumento favorável do Livro de Oração no tempo do reinado da rainha Elizabete, e ainda mais no reinado de Henrique VIII, quando esse livro foi produzido originalmente, e, depois dele, no reinado de Eduardo VI. Todavia, conforme penso, esse é o máximo que se pode dizer em seu favor. E não justifica a forma de perpetuação dessa forma de culto para sempre.
Foi esse, pois, o argumento de pessoas como Cranmer. Mas imediatamente surgiram aqueles homens que eu descrevi como “puritanos radicais”, e estes se opuseram desde o inicio ao Livro de Oração. Eles diziam: “Isso pode ser um recurso útil, porém, seguramente, nestas questões nós devemos ser governados pelo ensino do próprio Novo Testamento. Acaso podemos ficar somente com a mudança do nosso conceito sobre a doutrina da nossa salvação? Certamente o Novo Testamento nos ensina algo sobre a forma de culto, e nós devemos ser coerentes. Devemos levar a Reforma até o fim”. E a luta começou imediatamente. Se vocês leram sobre o grande homem que foi John Hooper, bispo de Gloucester, sabem que ele foi um dos líderes disso tudo, e muitos outros assumiram a posição dele. Eles alegavam que estavam apenas voltando ao Novo Testamento, e diziam que tudo o que tinha sido acrescentado de maneira injustificável, principalmente pela igreja católica romana, devia ser desfeito e descartado.
Chegamos então ao século seguinte, à grande reunião realizada na Abadia de Westminster, a famosa assembléia de teólogos convocada em 1643. Naquele tempo havia confusão neste país, em parte política mas também em grande parte religiosa, concernente, não somente aos bispos porém também a toda a questão relacionada a forma de culto. Os bispos estavam forçando o uso do Livro de Oração; todas as outras formas de culto eram proibidas. Daí, com a agitação política e o problema da guerra, a guerra civil inglesa, que estava em andamento, decidiu-se que se deveria convocar uma assembléia de teólogos. Ela foi realizada na Abadia de Westminster, em Londres, e produziu a Confissão de Fé, de Westminster, e, com ela, um diretório de culto público.
Pois bem, há algo muito interessante neste contexto. A opinião da maioria, entre os participantes da reunião, era da Igreja da Escócia. Nem sempre se compreende que, embora a Igreja da Escócia deva muito a João Calvino, ela se afastou do ensino dele sobre a questão do culto nas igrejas. Membros daquela assembléia achavam que avia necessidade de ajudar e orientar os ministros, mas não concordavam com Calvino quanto ao uso de liturgia expressa e de orações formais. Eles diziam: neste diretório damos a vocês os temas sobre os quais orar, uma idéia geral daquilo pelo que orar e de como orar, contudo não lhes damos as palavras.
Noutras palavras, eles fizeram precisamente o que sugeri em minha interpretação do uso da Oração do Senhor dada pessoalmente pelo nosso Senhor. Quanto vocês orarem, procedam desta maneira: comecem prestando culto e odoração, e então prossigam. Vocês devem ter ordem em suas orações; não saltem de petição em petição. Assim é que o diretório estava interessando simplesmente em apresentar um elemento de ordem. Ele dava uma indicação dos assuntos em geral, mas certamente não prescrevia palavras exatas nem dava instrução no sentido de que tais palavras, e não outras, deviam ser proferidas nas orações e elevadas como petições domingo após domingo, pelos tempos afora.
A seguir, o fim da minha revisão histórica me leva aos eventos de 1662, quando dois mil homens foram eliminados do serviço e dos benefícios da Igreja da Inglaterra. O argumento principal relacionava-se com a questão de culto nas igrejas, e não primariamente com a questão da doutrina. A Lei de Uniformidade estabelecia que todos os ministros tinham que usar o Livro de Oração produzido naquele tempo, modificando ligeiramente o anterior. A isso se reduzia toda a questão. Ora, pessoas como Richard Baxter e outros, que estavam entre os expulsos, não faziam objeção à liturgia. O que eles objetaram era que fosse compulsória. Eles se opunham a determinação que fazia do uso do Livro de Oração uma condição para a admissão ao ministério da Igreja da Inglaterra e que proibia as orações extemporâneas. Foi esse o fato geral de compulsão que constituiu o busílis de 1662.
Devemos examinar esta questão mais adiante, em nosso próximo estudo, quando espero considerar os princípios que nos devem governar em nosso pensamento sobre este assunto. Devemos repudiar a atitude que diz: “Ah, são belas orações! Não seria a linguagem perfeita?”, ou que expresse algum preconceito semelhante, freqüentemente baseado na ignorância, por um lado, ou na pura nulidade de pensamento, por outro. Dou a vocês o meu parecer de que existem aqui alguns princípios vitalmente importantes. Não basta reagir a certas coisas com violência e repulsa – embora eu tenha grande simpatia por este tipo de reação, se me é permitido dizê-lo! Não, precisamos ter bases sólidas, escriturísticas, para dizer – se é o que dizemos – que o Livro de Oração não representa a nossa maneira de entender como deve ser conduzido o culto do povo de Deus na Igreja de Deus. Devemos ser capazes de mostrar, com base nas Escrituras, as razões pelas quais ansiamos por ver uma restauração dos padrões neotestamentário do culto e pelas quais estamos dispostos a dedicar-nos a fazer tudo o que pudermos para trabalhar por tal restauração.
Neste meio termo, queira Deus abençoar-nos e habilitar-nos a considerar tais questões com espírito de humildade e de oração, à luz do ensino das Escrituras.
Oração de encerramento:
Ó Senhor, nosso Deus, vimos a Ti, e mais que nunca nos admiramos de que haja uma Igreja Cristã. Nós nos vemos, e vemos outros homens e mulheres desta e de outras épocas. Ó Deus, damos-Te graças porque o que vemos acima de tudo mais é que a Igreja é Tua e que ela teria perecido há muito tempo se não fosse Tua. Senhor, damos-Te graças por Tua paciência e longanimidade para conosco, e agora de novo nos rendemos e nos submetemos a Ti e à Palavra da Tua graça, rogando-Te que por ela nos controles e nos guies, e que nos capacites a visar sempre e unicamente Tua glória e ao Teus Louvor. Ouve-nos, ó Senhor, pois vimos a Ti em nome do Teu amado Filho, nosso bendito Senhor e Salvador. Amém.
Autor: D. Martyn Lloyd-Jones
Fonte: Livro O Comportamento Cristão - Exposição de Romanos Capitulo 12 /
Editora PESCapitulo 22 p.366-385