“De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada: se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria”. - Romanos 12:6-8
D. Martyn Lloyd-Jones
Temos concordado que, quando lemos uma passagem como Romanos 12:6-8, convém que nos examinemos para ver se nos conformamos a ela ou não. A Igreja sempre deve fazer isso; a Igreja sempre deve estar “subordinada à Palavra” e deve estar sempre se reformando em conformidade com ela. Não há duvida de que muitos dos grandes problemas que têm afligido a vida da Igreja Cristã devem-se ao fato de que ela se esqueceu de fazer isso. O perigo sempre é o de simplesmente continuarmos a usar impensadamente modelos permanentes com os quais estamos acostumados, ou nos quais fomos criados.
Pois bem, para o povo cristão isso é sempre errado. Deixando de lado qualquer outra coisa, não é inteligente agir assim, e certamente não é espiritual. É o tipo de atitude que o Senhor condenou na mulher samaritana, como constatamos na narrativa sobre ela em João, capitulo 4. Se vocês não puderem provar que a sua tradição é escrituristica, será errado permanecer nela. De qualquer forma, devemos estar sempre dispostos a examinar-nos, bem como a examinar a nossa vida cristã em geral, segundo a Palavra de Deus, porque, gostemos ou não, estamos todos envolvidos nos atuais movimentos tendentes à unidade da Igreja, e todos nós temos algum tipo de decisão.
Como já vimos, há então a tendência cada vez maior, em todas as igrejas, de adotarem formas de culto litúrgicas, católico-romanas. Por exemplo, aqui, em Westminster, em Londres, na tarde da sexta-feira da paixão deverá ser realizada uma procissão com a participação de todas as igrejas. Devo restringir esse “todas”, porque esta igreja (Capela de Westminster) não vai estar envolvida, mas o que se espera é que todas as igrejas de Westminster se juntem numa procissão, que irá da Praça Trafalgar à catedral católico-romana, situada não muito longe daqui, onde uma reunião religiosa será realizada pelo cardeal Heenan, pelo bispo de Londres e pelo ministro metodista da Auditório Central de Westminster (“Westminster Central Hall”). Esse é o tipo de coisa que esta acontecendo, e é por essa razão que é nosso imprescindível dever, como cristãos, entender algo destas questões.
A Igreja da Inglaterra e a Igreja Presbiteriana, que têm mantido uma série de conversações, recentemente publicaram um relatório, e aqui vão algumas das coisas ditas por elas: “Nenhuma igreja, como existe agora, esta preparada e equipada adequadamente, quer em suas formulações teológicas, quer em suas formas de culto, quer em seus métodos de evangelização, para as tarefas pelas quais o Espírito santo a convoca para o futuro”, Elas dizem que é preciso considerar todas estas coisas, e no momento nós mesmos estamos considerando as formas de culto para o uso nas igrejas.
Em conexão com isso, eis outra declaração do referido relatório: “Os sinais são muito numerosos para que as denominações estejam cientes do julgamento da historia e da necessidade de encontrar novos modelos de vida, testemunho e serviço da Igreja”.
Queiramos ou não. Estamos envolvidos nisso tudo. Aí estão igrejas dizendo que elas precisam reexaminar tudo. Se estão dizendo isso, quanto mais nós devemos dizê-lo, especialmente quando de antemão sabemos que, embora elas falem em “examinar”, o que realmente querem dizer é que as igrejas livres devem reexaminar-se e adotar o tipo católico-romano de culto nas igrejas. Não há como questionar isso. Têm sido feitas declarações nas quais se pressupõe isso. Assim como governo da Igreja vai ser episcopal, assim também o culto será católico-romano, litúrgico, em sua forma. É por isso que devemos empenhar-nos estrenuamente para esclarecer nossas mentes e ter um verdadeiro entendimento destes pontos.
Falemos com clareza. Não estamos julgando ninguém. Não é esse o meu objetivo. Não estou interessando nem mesmo em julgar o tipo católico-romano de culto, porém estou interessado em examiná-lo, e em examiná-lo a luz das Escrituras. E nós devemos estar prontos a admitir e confessar que nós também corremos perigo. Todos nós desenvolvemos tradições, e pode muito bem acontecer que descubramos que não estamos em tão plena conformidade com o ensino das Escrituras como às vezes imaginamos que estamos. Vimos em nosso repasso da história que muitos homens e mulheres, com a melhor das intenções, afastaram-se do ensino escriturístico; e nós também ainda estamos na carne, e estamos sujeitos aos mesmos perigos.
Por conseguinte, agora, tendo examinado a questão historicamente, façamos a nós mesmos esta pergunta: qual é a impressão geral que vocês têm quando lêem o Novo Testamento? Isso é sempre importante. Há por vezes o perigo de perdermos de vista a floresta por causa das árvores, o perigo de concentrarmos tanto em textos particulares que esqueçamos o teor geral das Escrituras, a atmosfera ou o espírito do Novo Testamento como um todo. Como não temos nenhuma injunção especifica do nosso Senhor nem dos apóstolos para orações particulares ou para a direção do culto de maneira particular, esta atmosfera ou espírito geral torna-se correspondentemente muito mais importante.
Pois bem, eu penso que não pode haver dúvida, de que a espécie de culto prestado pela igreja do Novo Testamento é a indicada em três versículos. Aqui o apostolo, sem se propor a isso, incidentalmente descreve o que se fazia na igreja da cidade de Roma. Nos versículos correspondentes de 1 Coríntios, capitulo 14, lemos que quando a igreja se reunia para o culto, um membro trazia um salmo, outro uma profecia, etc. (versículo 26). E notem também Colossenses 3:16, onde Paulo nos informa que eles se admoestavam uns aos outros, cantando “salmos, hinos e cânticos espirituais” ao Senhor.
O meu argumento é, pois, que a impressão dada é de um culto livre e espontâneo. Na verdade, na igreja de Corinto este elemento de liberdade e de espontaneidade era tão evidente que levou a certa monta de desordem, e o apostolo teve de dizer-lhes: “Faça-se tudo decentemente e com ordem” (1 Coríntios 14:40). Mas, se vocês estiverem amarrados em seu culto a uma forma definida, não poderão ter desordem, tudo é controlado. Portanto, afirmo que o ensino do Novo Testamento acerca das desordens que estavam surgindo em certas igrejas é, em si e por si, uma prova de que o culto prestado pela Igreja do Novo Testamento era livre e espontâneo.
Todavia, em segundo lugar, vamos além desse ponto. Essa desordem é algo que seria de esperar, porque é coerente e conforme com o ensino da bíblia quanto à diferença existente entre o Velho e o Novo Testamentos. Bem, sobre este assunto devemos ser cuidadosos. Temos necessidade dos Testamentos, e, contudo, há diferença entre a nova dispensação e a velha. Temos o mesmo Deus, a mesma graça, e a mesma salvação. Como já vimos extensamente quando examinamos os capítulos 9, 10, 11, afinal de contas o cristão é filho de Abraão, que é o pai de todos os filhos da fé. Portanto, há uma identidade e continuidade entre ambas as dispensações, e, no entanto, há uma diferença.
Para mim este ponto é extremamente importante, porque há a possibilidade de se cometerem dois grandes erros com relação a esta questão, e muitos têm caído num ou noutro deles. Um é fazer o divorcio absoluto entre o Novo e o Velho Testamentos e afirmar que o Velho Testamento não tem nada que nos diga respeito, e que o Novo é inteiramente novo. Isso é um erro. Poderíamos provar facilmente que é um erro citando o Novo Testamente e mostrando como o Novo vê o Velho Testamento. Essa idéia errônea viola também o principio geral de que há uma só graça de Deus, um único meio de salvação, e somente uma aliança eterna de salvação.
Mas devemos estar cônscios do perigo oposto, de dizer que não há diferença entre o Velho e o Novo, com a falácia decorrente de governar o Novo pelo Velho Testamento. Esse é um perigo muito real para certas pessoas, em particular as que pertencem à tradição reformada. Eles sabem do valor do Velho Testamento, porém o perigo que correm é o de exagerar e sobrestimá-lo, e assim inclinar-se a controlar o Novo pelo Velho Testamento.
Pois bem, estou querendo que vocês vejam que isso é um erro, que há uma diferença entre o Novo e o Velho Testamentos, mas que é uma diferença em grau, não em espécie. Permitam-me ilustrar o que quero dizer. Alguns ficam perplexos ante algumas palavras que o nosso Senhor disse acerca de João Batista. Em Mateus 11:11 disse o nosso Senhor: “Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João Batista; mas aquele que é menor no reino dos céus é maior do que ele”. Significaria isso que João Batista não deve ser considerado como salvo e como filho de Deus? Isso é patentemente errado. Qual será, então, a diferença entre João Batista e “o menor no reino dos céus”? Sugiro que é uma diferença, não em sua relação com Deus, nem em sua posição diante de Deus, e sim é, em grande parte, ema diferença em seu entendimento. Porque pertencia à antiga dispensação, João Batista ficava perplexo e incerto. Por outro lado, o cristão deve regozijar-se “com gozo inefável e glorioso” (1 Pedro 1:8) e encher-se de um grande espírito de certeza e segurança. Se vocês observarem João Batista e o contrastarem com os apóstolos no dia de pentecoste e depois, verão exatamente o que quero dizer.
Essa é, então, a diferença existente entre o Velho Testamento e o Novo. Entretanto, temos também a profecia de Joel, citada por Pedro em seu sermão do dia de Pentecoste, o que esclarece ainda mais o ponto. Os apóstolos e os demais foram batizados com o Espírito Santo e se tornaram um fenômeno. Alguns dos de Jerusalém, zombando, diziam: “Estão cheios de mosto” (Atos 2:13). E então nos diz o texto: “Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: Varões judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel” (Atos 2:14-16).
E que foi que Joel disse? Isto: “E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne” – não somente sobre certas pessoas especiais e seletas, seria em derramamento em profusão sobre toda a carne – “E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão” – eles não profetizavam no Velho Testamento; alguns sim, mas em casos excepcionais; agora houve uma grande profusão – “Os vossos mancebos terão visões” – os que tinham visão sob a velha dispensação eram poucos e raros, os videntes e os profetas – “e os vossos velhos sonharão sonhos; e também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e sobre as minhas servas naqueles dias, e profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima, no céu; e sinais embaixo, na terra” (versículos 17-19).
Ora, ai esta, certamente, a diferença essencial entre o novo e o velho, e ignoramos isso para nosso risco. Isso leva inevitavelmente a um diferente tipo de culto. Observem o culto como se realizava no Velho Testamento – o templo, o tabernáculo era mais ou mesmo essencial. Por quê? Bem, era um tipo externo de culto, com um sacerdócio para isso designado. Era muito formal. Eram dadas instruções sobre os utensílios e o mobiliário nos mínimos detalhes. Tudo era ordenado, tudo era prescrito com exatidão. E Deus, tendo dado instruções detalhadas sobre o tabernáculo de Moisés, disse-lhe: “Olha, faze tudo conforme o modelo que no monte se te mostrou” (Hebreus 8:5).
Contudo o Novo Testamento é inteiramente diferente; é um tipo interior, interno de culto; é livre e informal. O nosso Senhor sentava-Se num barco ou na encosta de um monte e Se punha a pregar. Ou pregava numa casa – em qualquer parte. Houve a mudança da esfera do formal e do externo para um tipo de culto vivo, vital, espiritual. E já não se deve reconhecer apenas certas pessoas como sacerdotes. Meus amigos, temos que lembrar-nos da Reforma Protestante – o sacerdócio universal de todos os crentes. É por isso que não andamos nessas procissões; não queremos voltar a nenhum sacerdócio. Cremos, asseveramos, o sacerdócio universal de todos os crentes. Como cristãos, somos um reino de sacerdotes, em “sacerdócio real” (1 Pedro 2:9).
É isso que eu quero dizer quando declaro que há uma diferença essencial entre o novo e o velho. Por isso, quando você lê sobre a espécie de vida de igreja revelada por versículos como estes de Romanos, capitulo 12, fica logo impressionado e diz: “Esse é o tipo de coisa que eu poderia esperar do cumprimento da profecia de Joel. É isso que eu esperaria como resultado do “derramamento”, em grande profusão, do bendito Espírito Santo de Deus”.
Passo agora a minha terceira razão para opor-me a uma forma de culto litúrgica de culto. Indiquei em minha revisão histórica que um dos argumentos para o estabelecimento de formas de culto era que essas eram essenciais por causa da ignorância e da incapacidade da maioria dos sacerdotes que se haviam tornado ministros protestantes. Eu admiti que esse argumento tem alguma força. Contudo, quero dar meu parecer a vocês que é um argumento que deve ser manuseado com muitíssimo cuidado, deste ponto de vista: o nosso Senhor não seria capaz de habilitar os homens? Não Lhe seria possível levantar homens e dar-lhes dons que os capacitem a realizar o culto, a orar, a pregar, etc.?
E, naturalmente, a resposta à minha pergunta é constituída pelos três versículos que estamos examinando. O nosso Senhor dá estes dons mediante o Espírito, e o Espírito os pode dar a qualquer pessoa. Essa é uma das realidades gloriosas que vemos no Novo Testamento, mas também concretizado muitas vezes durante a subseqüente historia da Igreja Cristã.
É óbvio que Deus concedeu dons e levantou homens nas primeiras igrejas. Procurem imaginar as condições daqueles dias. Havia os apóstolos e outros. Eles viajavam por toda parte e pregavam o evangelho. Muitos foram convertidos, e os apóstolos formavam igrejas com eles, e partiam. Que acontecia com as igrejas? Há uma resposta óbvia que, num sentido, já consideramos. Em cada igreja o Espírito concedia dons a diferentes homens, e eles ocupavam suas posições de acordo com esses dons. Houve eleição de anciãos ou presbíteros, e alguns deles se tornaram presbíteros docentes, porque lhes fora dado o dom de ensinar.
Pois bem, em anos recentes a Igreja vem se dando conta dessa verdade cada vez mais. Vejam os livros escritos por aquele excelente homem, Roland Allen, sobre St Paul’s Missinary Methods and Ours (A obra Missionária do Apóstolo Paulo – Seus Métodos e os Nossos) – penso que agora suas idéias são aceitas quase totalmente. Já em 1913 Roland Allen assinalava que as igrejas ocidentais tinham adotado um método errôneo em sua obra missionária. Os missionários iam para diversos países, havia conversões, e os missionários lá ficavam como seus ministros. Mas Roland Allen mostra que os apóstolos não agiam assim. Os ministros surgiam dentre as pessoas locais. Bem, eles não se levantavam por si. O Espírito lhes concedia os dons, e então lá se desenvolvia, das próprias igrejas, o tipo de ministro que era essencial a cada igreja. E dizer que isso não pode acontecer, e que portanto deve-se ter um ou dois homens que escrevam orações para que todos os demais leiam, é certamente uma censura ao poder de nosso Senhor de conceder dons ao seu povo e de prover dos necessário dons os Seus servos e ministros na vida da Igreja. Creio, pois, que é espiritualmente errôneo argumentar daquela forma, como também creio que é historicamente errôneo. Como eu disse, estou disposto a concedê-lo como um expediente temporário, e muito breve, mas não deve ter continuidade.
Permitam-me ilustrar isso. John Owen dizia que pedir aos homens que continuem lendo essas formas fixas perpetuamente é como ensinar um homem a nadar. Como no inicio o homem não pode nadar, você lhe dá o que chamamos bóia. Naquele tempo enchiam-se duas bexigas e estas eram amarradas ao homem. Quando ele entrava na água, as duas bexigas infladas o mantinham flutuando, possibilitando-lhe aprender as braçadas. Mas, como Owen assinalava, ele não ficava usando as bexigas para sempre – se não, nunca aprenderia a nadar. Aqui vai outra ilustração similar: se um homem quebra a perna, por um tempo terá que usar muletas, e isso esta certo. Todavia não deverá continuar a usá-las pelo resto da vida. De igual modo, as orações fixas são justificáveis como expedientes temporários, mas não devem ser usadas permanentemente.
Ou deixem que lhes fale sobre isso desta maneira – este é meu quarto ponto: certamente, criar uma liturgia escrita é, em última análise, o modo errado de encarar o problema da falta de dons. Mas vocês poderão perguntar: “O que tudo isso tem a fazer conosco?” “Isso não seria historia antiga?” Não é. Conheço igrejas em diferentes partes deste país onde não se permitem reuniões de oração nem outras reuniões quaisquer durante a semana à noite. Por quê? “Porque”, dizem-nos, “não há ninguém aqui que saiba orar”. Conheço igrejas que costumavam ter reuniões de oração bem freqüentadas e florescentes, e onde agora não existe nem uma só dessas reuniões. O povo diz: “Não temos ninguém capaz de orar, ninguém que possa fazer-nos uma palestra, ninguém que nos guie, ninguém com capacidade para isso”. Portanto, este problema é verdadeiramente um problema real e moderno.
Como, então, enfrentar tal problema? Bem, estou certo de que a maneira de enfrentá-lo não é providenciar um livro que qualquer pessoas possa ler. A maneira de enfrentar um problema como esse é levar a igreja a examinar-se e a dizer: “Por que nesta igreja ninguém sabe orar em público? Que é que acontece? O cristão moderno é diferente dos cristãos primitivos? Por que as pessoas não oram hoje como costumavam orar?” Enfrente isso dessa maneira, e diga: “Dobrem os seus joelhos e peçam a Deus que os perdoe”. Então, sem perceber, os membros já terão começado a orar. Simplesmente pedir perdão em público é orar. Portanto, o modo de encarar esse problema não é providenciar uma espécie de muleta permanente, mas arrepender-se e pedir a Deus que tenha misericórdia e faça chover Sua benção.
Aqui também há um principio de ampla aplicação. Vejo na Igreja moderna a tendência de repetir essa falácia em diferentes áreas, não com referencia a formas de oração. Por exemplo, a maneira pela qual uma ou mais igrejas enfrentam um período de ineficiência e aridez é muito diferente hoje do que se fazia em tempos passados. Hoje em dia, quando uma igreja se acha nessas condições, seus lideres resolvem chamar alguma organização evangélica para que venha pôr as coisas em ordem. Mas não era assim que se fazia. Houve tempo em que, quando na igreja não havia muita benção e poucas pessoas estavam sendo convertidas, os membros da igreja e seus lideres indagavam: “Por que as pessoas não estão sendo convertidas? “Que será que esta errado?” Eles diziam: “Por que foi que o Espírito de Deus nos abandonou? Designemos um dia de oração, humilhação e jejum. Compareçamos perante o Senhor e confessemos a Ele que estamos falhando em nossos deveres para com Ele. Roguemos-Lhe que nos mostre onde erramos e peçamos que ele volte a estar entre nós”. E continuavam fazendo isso até vir o avivamento. Certamente esse é o método bíblico, não recorrer a nenhum expediente de fora.
Permitam que lhes ofereçam mais uma ilustração prática do que estou querendo dizer. Deixem-me colocá-la em termos pessoais – perdoem-me isso. Tenho um grande problema. Quero passá-lo a vocês, e ficaria contente se vocês pensassem nele e de um modo ou de outro me dessem suas respostas. Enquanto falo, o que digo esta sendo gravado em fita, e isso é feito toda sexta feira e duas vezes cada domingo, e recebemos cartas de diferentes partes do país pedindo essas fitas. Eis o meu problema: devo permitir que essas fitas sejam enviadas? Há pregadores que permitem, mas em geral eu não permito. Por quê? O argumento que me apresentam é o seguinte: “Mas, pense nessas pessoas nos domingos, ou que talvez tenham pregadores que estão pregando contra a verdade. Não seria seu dever enviar-lhes as fitas?”
Mas eu tenho uma réplica, e se baseia no princípio que estou colocando diante de vocês. Receio que vamos acabar chegando a um estágio em que talvez tenhamos meia dúzia de pregadores neste país, e todos os demais fiquem ouvindo as gravações desses pregadores. Não é impossível. Há uma crescente tendência nesse sentido. E eu digo que isso é errado. Acaso o Espírito de Deus não pode conceder dons aos homens nessas igrejas? Por conseguinte, pode ser um perigo providenciar sermões pré- fabricados.
E esse é o argumento contra formas litúrgicas de culto. Já está tudo ali, e só lhes resta lerem as palavras. Um homem as prepara, e centenas, ou talvez milhares, as lêem. E me parece que essa prática tende a violar o ensino, tão claramente exposto nas Escrituras, segundo o qual o mesmo Senhor que pode levantar homens dentre os escravos e os servos do século primeiro certamente ainda pode fazê-lo. Mas parece que olvidamos o Espírito Santo e dizemos: “Mandem-nos fitas”, ou, “Forneçam-nos sermões”, ou, “Forneçam-nos orações”. Seguramente, isso não deixa de ser uma certa censura ao poder do Espírito de prover as pessoas necessitarias e os necessitados dons.
Permitam, porém, que eu passe ao meu quinto argumento. Não haveria nessa formas prescritas de culto algo que contradiz algumas claras afirmações presentes no Novo Testamento? Pode-se ver uma delas na entrevista do nosso Senhor com a mulher samaritana, em João, capítulo 4. Diz a mulher a Ele – e isso é típico do argumento apresentado – “Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar”. Isso, digo eu, é a velha dispensação, e aqui está a resposta do nosso Senhor: “Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai” – não há necessidade desses lugares estabelecidos; podemos tê-los ou não; não precisam limitar-se a isso – “Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é espírito, e importa que os que o adorem o adorem em espírito e em verdade” (João 4:20-24).
E se vocês lerem também em Atos, capítulo 7, verão que o mártir Estevão teve que desenvolver precisamente o mesmo argumento quanto se dirigiu àqueles judeus de “dura cerviz” que queriam restringir o culto à forma do Velho Testamento. Vejam depois outro exemplo, pelo qual já passamos em nosso estudo desta Epístola – Romanos 8:26,27 – “E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém” – você não pode dizer isso, se confia em orações escritas, pode? Assim, quais são as provisões para nós? Orações preparadas por alguns grandes homens? Não, não – “mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos”. A resposta à nossa incapacidade não são orações adrede preparadas, é o Espírito. Pode ser um gemido, algo quase inarticulado, porém é oração – “com gemidos inexprimíveis”.
E há diversas exortações acerca da oração no Novo Testamento. Penso, por exemplo, nas palavras de Paulo no último capítulo da Epístola aos Efésios: “Orando em todo o tempo com toda oração e súplica no Espírito” (versículo 18). É assim que se ora. Não por meio de formas, mas sim “no Espírito”. O Espírito dará a você a oração, e lhe dará facilidade, poder e tudo o que você necessita. Por isso eu sinto que devemos considerar aqueles três textos com muita seriedade, sem aduzir mais nenhum, antes de chegarmos a uma decisão final sobre este assunto.
Mas, a seguir, o meu sexto argumento é que aqui há o perigo muito grave de interferirmos na liberdade que o Espírito tem de dar inspiração repentina, imediata. Posso ilustrar isso com a pregação. É um grande problema, que todo pregador deve ter enfrentado uma vez ou outra. Não somos todos igualmente dotados no que se refere à fala, e há alguns que parecem quase impossibilitados de pregar, se não escreverem cada palavra. O grande Dr. Thomas Chalmers realmente não conseguia pregar sem o seu manuscrito. Entretanto esse, parece-me, é um ponto muito importante. Não chego ao ponto de dizer que nunca se deve escrever sermão, não creio nisso, mas o que, sim, digo é que o pregador sempre deve estar livre. Quantas vezes eu vi pessoalmente que o que foi utilizado por Deus era algo em que eu nunca tinha pensado até o momento em que o proferi. Foi-me dado enquanto eu estava pregando, não quando estava me preparando. A liberdade do Espírito! Devemos ser muito cuidadosos, para não suceder que imponhamos limites à liberdade do Espírito. Se você estiver preso a um particular texto escrito, onde entra o Espírito?
São essas as coisas que temos a tendência de esquecer. Lembro que uma vez, há uns vinte anos, conversei com o então Diretor Religioso da BBC. Tivemos uma discussão sobre estas questões, e eu estava tentando explicar-lhe porque eu não pregava em seus programas. Coloquei a explicação na forma de uma pergunta: “Se de repente o Espírito viesse sobre o pregador, que aconteceria com os seus programas?” E ele admitiu que a pergunta era muito justa.
Mas, de novo, observem isto: Não correríamos o risco de fazer algo que seja antagônico ao avivamento? No avivamento há um elemento essencial de liberdade. Tem que haver uma oportunidade para o Espírito irromper. Sejamos cautelosos em nosso desejo de termos cultos “dignos” ou “nobres”. Essa tem sido a tragédia dos não conformistas. Em meados do século dezenove começou-se a falar em nobreza e cultura – e o não conformismo decaiu dali em diante. A prova de um culto não é se ele é “nobre” ou não, e sim se o poder do espírito esta nele ou não.
Por que será que faz tanto tempo que não há avivamento? Em parte a resposta não seria esta? Não se dá oportunidade ao Espírito Santo. Existe o perigo de extinguir ou apagar Espírito. John Owen, voltando a citá-lo, diz especificamente que, à luz dos versículos 6, 7 e 8 de Romanos, capítulo 12, recai sobre os cultos litúrgicos e as orações lidas a culpa de apagarem o Espírito. Mas, conquanto haja esse perigo, eu pessoalmente penso que o Dr. John Owen foi um pouco longe demais, porque o Espírito Santo é tão poderoso que pode até irromper em meio a um culto religioso lido. Ele fez isso muitas vezes. Um dos maiores pregadores que houve no Despertamento Metodista, em Gales, há mais de duzentos anos, foi um homem chamado Daniel Rowland, e o Espírito veio sobre ele quando ele estava lendo um texto sobre o culto da Ceia do Senhor no Livro de Oração Comum.
Mas há os que dizem: “E então, isso não justificaria o uso do Livro de Oração?” Não. Trata-se ai de uma exceção. O Espírito Santo pode entrar a despeito da nossa ação de apagá-lO, e a despeito das nossas formas que põem limites a Ele, mas isso não justifica a nossa persistência nesse procedimento. Há, pois, o perigo de limitarmos a liberdade do Espírito. Quantas vezes você ouviu falar que um avivamento irrompeu num culto realizado numa catedral? Esse é o teste.
E, por último, não seria um fato puro e simples que uma condição de baixa espiritualidade na Igreja Cristã sempre leva ao uso de formas? Quando os homens não conseguem pregar, começam a ler os seus sermões; quando não conseguem orar, começam a ler as suas orações. Baixa espiritualidade na Igreja sempre vai em direção ao tipo católico-romano de culto, com ênfase ao que denominam “a beleza do culto”, expressão com a qual em geral as pessoas se referem a “formas fixas de culto”, e isso vem acontecendo cada vez mais no século vinte. Em contraste, toda vez que há um avivamento, sempre ocorre um avivamento da oração extemporânea e da liberdade na realização do culto.
Pois bem, os evangélicos de todas as denominações sempre provaram isso. Os evangélicos que normalmente usam formas fixas de oração, sempre oram livremente e sem preparo prévio nas campanhas evangelísticas. Então, porque não procuram fazer a mesma coisa em todos os cultos realizados nas igrejas? Há uma contradição aí. Quanto mais evangélico o homem é, mais liberdade deseja e mais ele quer introduzir orações extemporâneas em sua tarefa oficial, mesmo que signifique romper a lei. O evangélico que tem em si o Espírito, inevitavelmente será livre e se expressará livremente, com todas as veras do seu espírito.
Vou deixá-los neste ponto apenas com uma pergunta que, ao que me parece, é uma extensão do argumento que venho elaborando com vocês. Porventura não entra aqui também a questão geral dos hinos? Há pessoas que dizem que não deve cantar hinos, e sim somente salmos. Haveria salmos adequados a dar expressão à plenitude da experiência do Novo Testamento? Podem os salmistas, que só viram estas coisas “de longe”, expressar plenamente o que sentem, experimentam e pensam aqueles que conhecem a salvação toda na plenitude do Espírito? Sugiro-lhes que devemos reexaminar cuidadosamente e com muita seriedade toda essa área do culto, para que não limitemos a nova dispensação pela velha. Você pode tornar-se legalista e literalista, e isso é sempre errado. Portanto, penso que os princípios que estivemos discutindo aplicam-se também aos hinos.
E assim, de novo, vocês verão que em todos os grandes períodos de movimentos do Espírito, de marés do Espírito sempre ocorre um irrompimento da composição e do canto de hinos e melodias evangélicos. Cantar sempre foi uma das grandes características de um genuíno movimento do Espírito de Deus. Somos informados de que nos primeiros tempos dos “Separatistas”, no reinado da rainha Elizabete, alguns foram tão longe que chegaram a proibir cantar. Eles diziam que até cantar salmos era um erro. Mas logo se corrigiram a esse respeito. O Velho Testamento nos ensina a cantar, e a cantar salmos. Contudo, obviamente, acima e além disso, no Novo Testamento os crentes começaram a cantar hinos e “cânticos espirituais” (Colossenses 3:16), os quais evidentemente eram dados pela inspiração do Espírito. E esta, reitero, tem sido uma característica da igreja em todos os grandes períodos de avivamento e de vivificação, quando uma nova vida entra nas pessoas mediante as operações do Espírito, em Sua graça.
Povo cristão, voltemos a orar abertamente no Espírito, e roguemos a Ele que nos ilumine, nos dirija e nos guie. Examinemos tudo o que somos e tudo o que fazemos, as nossas formas de culto como também a nossa fé e o nosso governo eclesiástico, à luz do ensino das Escrituras. Queira Deus abençoar-nos nesse propósito, abençoar-nos individual e coletivamente.
Fonte: Livro O Comportamento Cristão
Autor: D. Martyn Lloyd-Jones
Exposição de Romanos Capitulo 12
Capitulo 23 p. 386-402 / Editora PES